Fotos: Maira Dill – Vídeos: Jonas Fachi e Warung Beach Club
Aconteceu! O tão aguardado The Last Dance com Sasha & John Digweed fez do último dia 6 de dezembro uma daquelas datas que o público do Warung Beach Club jamais esquecerá. S&D possuem relações profundas com o clube, tocando desde os primeiros anos e fazendo parte da construção da identidade sonora de toda a região.

No ano passado, eles fizeram muitos novos fãs com um set inesquecível, porém havia algo que ainda precisava acontecer: uma noite “for the books”, uma noite que entraria no hall das “melhores da história do clube”. Algo que eles, sozinhos, já detinham (Sasha 2006, Digweed 2011), porém juntos ainda precisava acontecer.
É difícil para um público que passou a frequentar o Warung pós-2020, hoje maioria, entender o que S&D representam para a história do Templo. Não adiantava só falar do passado e dos feitos que eles já alcançaram; era preciso provar ao vivo que eles “são tudo isso”. E claro, o grande barato de uma carreira gigante como a deles é ter que conquistar novos públicos a cada ciclo de 5 ou 10 anos, não vivendo apenas das glórias do passado. Elas são importantes, mas não vendem ingressos sozinhas. O ano passado foi a base; este ano, tudo foi para um novo patamar. O clube lotado é a prova.
Convenhamos: Digweed passou sete anos sem vir e Sasha tocou poucas vezes nos últimos anos. Então foi natural seus nomes caírem um pouco no esquecimento quanto às preferências da nova geração local. Eu passei muitos anos falando, mostrando e postando coisas deles para que outras pessoas também olhassem para esse lado e se interessassem por esse estilo bastante particular, underground, complexo de ouvir, mas que, ao vivo, tudo se transforma, devido à estupenda capacidade que eles têm de sintetizar tracks em uma atmosfera progressiva intensa.
Eu e alguns amigos, veteranos no clube, sabíamos que, se houvesse uma chance em que diversos fatores estivessem alinhados, o estrago (no bom sentido) seria grande. 2024 foi um set clássico, com um som muito fino e hipnótico, com vários momentos lindos pela manhã e euforia na última track, quando John tomou conta da pista e mostrou por que não poderia ficar tanto tempo sem vir. E dessa vez? Bem, Sasha estava em um daqueles dias iluminados. E quando isso acontece, vidas podem mudar. Quais seriam os fatores alinhados? O que é preciso para uma noite entrar no hall das grandes do Warung?
Primeiro: ser unânime, onde todos saem da pista com a sensação de que algo mágico acabou de acontecer. Segundo: ter um sol daqueles no final. O sol é o símbolo máximo do Warung e, toda vez que ele surge, faz com que público e DJs se fundam em um sincronismo único ao presenciarem esse corpo celeste ascender do mar até a pista de dança. Terceiro, e não menos importante: o sound system precisa estar perfeito. O Warung historicamente sempre teve isso muito bem alinhado, porém, nos últimos anos, devido ao prédio ao lado, foi algo que deixou a desejar. Em 2025, acredito que eles tenham alcançado a regulagem ideal, com essa noite tão importante sendo simplesmente uma bomba sonora. É notável: com o SS perfeito, o público automaticamente vibra e dança naturalmente, percebendo a música dentro de si. Todo o resto perde cor se não houver música à altura. Quarto ponto: ser um longset. Isso e os outros fatores descritos estavam em harmonia; só faltava então os caras virem inspirados para tudo correr bem. E isso também aconteceu.
Meu ritual de sushi e saquê com amigos, ir cedo em noites importantes, foi cumprido à risca, recebendo amigos dos EUA e do Peru que vieram especialmente para contemplar esse set. Chegamos por volta das 22h30 para ver Danee no Garden, um dos grandes DJs da cena local, forjado nesse clube, onde fez um set de 4 horas ao seu estilo único. Como é bom chegar no Warung e já ouvir um som conceitual e inteligente sendo tocado por um excelente DJ.
Depois subi para ouvir um pouco do Edu Schwartz, outro DJ local e residente da casa, que estava vivendo um grande momento na carreira ao fazer esse warm-up no Main Room.

E mais: tocando basicamente faixas autorais ou edits específicos para a noite. A exemplo das duas últimas: a clássica “Forget The World”, de John Creamer & Stephane K, e fechando o set simplesmente com “Song Of Life”, do Leftfield (Edu Edit). Uma escolha perfeita de quem sabia exatamente onde estava pisando. Primeiro: Leftfield são os detentores da primeira faixa a ser intitulada “Progressive House”, ainda em 1990. Um duo lendário que ajudou muito na evolução do Acid House para algo mais sofisticado e essencialmente britânico. Segundo: Song Of Life é a faixa de abertura do primeiro álbum de S&D juntos, em 1994. Então foi realmente especial ouvir sua melodia com os dois no palco se preparando para tocar.
Era eles, sabe? Estavam ali de verdade. Os caras dos lendários álbuns da Renaissance, os arquitetos de uma era, TOP 1 da DJ Mag, da série Involver, das compilações Live In. Pelo menos três décadas de DJing em altíssimo nível, pisando pela última vez na cabine de um dos clubes mais importantes de todos os tempos.

Sabe o peso disso? Eles voltarem ao clube após 20 anos de suas estreias e ainda protagonizarem uma noite de contornos épicos. Sabiam da responsabilidade, ansiavam tocar mais uma vez no clube que tanto amam e respeitam. A expectativa se confirmou com a chegada deles ao palco. O público reagiu de imediato, gritando e aplaudindo. Bom sinal. Estavam ligados e com frio na barriga. Sasha inicia o set com uma linda faixa com vocal, um dos poucos da noite, deixando aquela sensação de “começamos bem”.
Não demorou muito eu fui para o front encontrar amigos, foi difícil chegar à frente, o som estava cristalino e o sub-bass trabalhando desde o chão. Começou a ficar imperceptível quem estava tocando o que, só se prestasse muita atenção. O groove, os tons misteriosos, a pista bem escura, como eu gosto do Warung nessa vibe de “estamos decolando”, com a pista envolvida e arriscando seus primeiros picos de energia. Tons de vermelho e azul nas luzes a todo momento.
Destaco essas faixas nas primeiras 2 horas:
Timo Maas, Marc Werner – La Candela (JAMIIE remix)
DJ Koze – Buschtaxi
D-Formation, Malek Mhedhbi,
Chook TN –Waves of Morion (igor Bartyuk remix)
Auntie Flo – Cobra
É muito interessante perceber a pista vidrada neles tocando. John sempre focado; Sasha, ao perceber a energia, começou a chamar todos para levantar as mãos. Ele realmente liderou a noite com maestria, além de duelarem entre si para ver quem tocava a melhor próxima faixa. Olhando da pista, ficamos intrigados, pois eles não se falam. Possuem uma conexão quase telepática, sabem exatamente o que o outro está fazendo e se respeitam mutuamente. Sasha já declarou em entrevista que eles gostam disso, dessa competição mental. Talvez seja o combustível que os alimenta por tantos e tantos anos.
Eu, de certa forma, já pressentia que fariam o que fizeram, pelo contexto histórico e pela grande fase que o Sasha voltou a ter. 2025 tem sido um daqueles grandes anos de sua carreira como DJ, que tem altos e baixos. Quero deixar claro: um ano “baixo” dele, por questões que não preciso mencionar, ainda é bem acima da média do que temos visto na cena atualmente, que, na minha visão, passa por uma crise de grandes DJs.
Agora, um ano em alta dele… se você pegar um set inspirado, provavelmente será a noite da sua vida.
E o John? Bem, sua classe, destreza, mentalidade e qualidade técnica absurda se mantêm como um relógio: impenetrável, disciplinado, com seu próprio mixer e suas combinações de efeitos que são sua marca registrada. Talvez seja o DJ mais consistente do mundo. Um operário, um manipulador de mentes que te arrasta e te prende em seu mundo estranho e magnético. Quando a pista se deu conta, já estava pulando e dançando com sua música do futuro.
Ali, no meio da noite até começar o amanhecer, foi algo tão poderoso que até fica difícil descrever. Não havia mais a sensação de troca de músicas; era apenas um conjunto sonoro rodando em alta rotação o tempo todo.
Destaco essas faixas neste segundo período:
2:54am – Simon Vuarambon – Mars
3:07am HARDEN – Breathe (Super Flu remix)
3:49am Frankey & Sandrino – Please (Echonomist remix)
4:39 am Slam – Azure Pt.1
4:48am kalexi shelby feat tony loveless – Ancestral Rhythm (C2 Edit)
Zoo Brazil – Seconds Away
Rex The Dog – Change This Pain For Ecstasy (Jonathan Kaspar Remix)
5:25am Guy Mantzur, Chicola – Neon Bible
Ouvir a clássica Azure foi uma surpresa inesperada. Eu amo essa música e ela está na lista das minhas favoritas de todos os tempos. Um dos poucos clássicos da noite.

Esse é outro ponto que quero destacar: por mais que a gente fique sonhando com eles tocando essa ou aquela música, afinal, a discografia deles é incrível, o normal é eles trazerem sempre coisas novas. Flutes, Xpander, For What You Dream, Heaven Scent, Tripchain, ou até lançamentos recentes deles que são incríveis, como Love & Cream ou Dead Synth… nada disso foi tocado!
Sabe por quê? Porque eles não precisam de hits para fazer um dos melhores sets já vistos.
É uma grande lição para uma nova geração de produtores que se apegam muito às suas produções e as tocam repetidamente. S&D gostam de tocar o que você nem sabe que existe ou, como diz John, “algo que você nem sabia que gostava”. Esse é um conceito muito poderoso, pois, ao final, todos falam da experiência, do set, de como eles são DJs de outro nível tecnicamente e não sobre essa ou aquela música lembrada. Eu poderia fazer um review inteiro sem precisar mencionar uma única música, e ainda assim todos iriam entender o que aconteceu.
Quando começou a amanhecer, com aquele ritmo frenético, faixas mais emocionais pelo lado do Sasha e lisérgicas pelo lado do John passaram a ter destaque. Aí sim, eles te permitem pensar um pouco em músicas.
5:25am Guy Mantzur, Chicola – Neon Bible
5:33am Faithless – Not Going Home 2.0 (Eric Prydz remix)
5:38am Audiofly, Fiora – 6 Degrees (Helsloot remix) (outro clássico com um novo remix)
The Power – Poppi Ciez & Askar
Thaddeus X – My Life
Maceo Plex – Solar Detroit (foi bastante inesperado e muito forte no amanhecer)
Tiga – Sunglasses At Night (Raxon Remix) (uma das faixas do ano!!)
Ame – Rej (Remix)
BT – Mercury & Solace (BT 12″ Mastermix) – essa faixa dos anos 90 com um edit diferente, foi incrível ouvir na pista, sempre quis ouvir algo dessa primeira década da cena clubber ao vivo. Sonho realizado.
Teho – Continuum (Oxia Remix)
Slam – Eterna (Ezequiel Arias remix)
Foto John sozinho
Ouvir “Eterna”, que é uma das grandes faixas de todos os tempos, principalmente pelo remix do próprio John com Nick Muir, foi muito especial. Eu aguardava para ver com qual faixa ele faria seu famoso vídeo para postar. Na virada dela, com seu vocal hipnotizante, ele saca o telefone na cara da pista e tudo vai à loucura. John vira para trás e fala com seu tour manager, Diego, algo como “isso aqui é incrível”. Eu estava bem ali, colado atrás, percebendo tudo. Só o fato de ele estar do meu lado já era uma vitória. O vídeo abaixo fala por si.
Einmusik & Solee – We Talk About Dreams — que faixa impressionante. Um techno progressivo que até nomes como Tiësto vêm tocando.
Momento épico: Sasha pegando o adesivo “Warung Forever” e apontando para o público!!

Os sorrisos, as reações das pessoas, a energia que não baixava… não existiu aquela sensação de “ok, amanheceu, e agora?”. Simplesmente foi um fluxo contínuo e, quando nos demos conta, já havia sol do lado de fora.

Já passava das 07h quando Sasha solta “Music Is The Answer”, de Joe Goddard, com remix do Hot Since 82. Sasha tira literalmente um coelho da cartola, resgatando essa música de 2017, que naquela época parece ter passado despercebida. Existem músicas que são como vinho ou filmes: precisam de tempo para serem compreendidas. Essa é uma delas. Um vocal doce, algo totalmente pensado para acontecer, faz todos ficarem extasiados com seu tom melódico. Sasha poderia ter escolhido várias desse estilo em sua discografia, ele é mestre em criar tracks assim, com vocal feminino e melodias marcantes, porém ele desafia o público e diz: “ouçam isso, só isso”.

A reação das pessoas diz tudo, se eternizando como um dos grandes hinos do clube em todos os tempos. Hinos não seriam sobre faixas que são tocadas por vários artistas? Sim, mas para o Sasha pode virar, tudo pode.
Em algum momento da manhã eu vi uma garota nos ombros de alguém totalmente emocionada, algo que não acontecia a anos, que momento!

Sasha, sabendo que era o fim, começou a chorar. Vira para trás e abraça Gustavo Conti. Um dos momentos mais lindos que já presenciei ali. Afinal, sem Conti, nada disso existiria. Seu amor pela música, por esse tipo de música, transcende o tempo e chega em 2025 atingindo seu ápice.
O Sasha chorar não deveria ser surpresa, sabe?
Sim, é óbvio. O templo vai acabar.
Tudo aquilo deixará de existir, e isso é muito difícil de lidar, até mesmo para as lendas.
Tenho certeza de que todos que estiveram lá, passaram os últimos dias com uma mistura de sentimentos: choque por compreender quão bom podem ser alguns seres humanos em seus ofícios, com talentos quase divinos, também muita felicidade por ter vivido uma noite tão especial e por fim um sentimento de melancolia por saber que foi a última vez, a última dança deles e que o Warung está cada vez mais próximo de seu ato final.

Quando foi anunciado que iria fechar não causou tanta comoção como está sendo agora nos últimos eventos, com noites que fazem as pessoas quererem viver mais e mais daquela mágica.
Os argentinos que vieram e não foram poucos, estão chamando a noite de “o WARUNGAZO”, em clara referência ao “Maracanaço” da Copa de 50. Só que, dessa vez, ninguém saiu perdendo. Abaixo, todos os meus vídeos da noite:
Em um mundo onde uma nova geração de artistas só pensa em como fazer um evento maior e com mais estéticas temáticas, com cachês que não cabem na cena clubber, ver caras como Sasha & John Digweed no auge de seus quase 60 anos, tocarem por mais de seis horas de música conceito em um dos últimos templos sagrados da cena clubber, é um deleite para um movimento que luta para sobreviver em meio a comercialização. É claro que S&D já tiveram suas fases de tocar para grandes audiências nos anos 2000, headliners dos maiores festivais e ainda hoje tocam para públicos de 15, 20 mil pessoas, a exemplo da Argentina.
Porém, grande parte de suas agendas é em clubes menores, tocando para públicos que realmente querem vê-los. Eles sabem o que gostam, não abrem mão disso e sabem o tamanho que a cena tem para eles atualmente, já fizeram suas vidas financeiras a muito tempo e se hoje sobem no palco para fazer longsets é porque realmente amam e acreditam existe muita música boa para ser encontrada é mostrada dentro de conjuntos sonoros.

Ao final do set, com o público entregue, desnorteado, eles rapidamente desaparecem. Sasha em poucos segundos já estava no camarim, John se abaixa rendendo essa foto emblemática. ‘’Já não estamos aqui, fiquem com a memória músical’’. Esquisito? Sim, autêntico? Também. São formas de ver o mundo.

Por anos eu desejei ter sido um jovem na década de 90 e 2000, e não uma criança. Só pra ter vivido o boom da cena clubber, os primeiros anos do Warung ou a ascensão dos primeiros grandes DJs ingleses. Porém, depois dessa noite, vejo que o melhor momento que poderia viver na cena é hoje, os melhores sets que esses caras poderiam fazer seja talvez o próximo, e acho que eles também pensam assim. Só agradeço pelos últimos 15 anos frequentando o Warung onde pude participar de vários momentos incríveis que com certeza estarão nas páginas de um livro que contará memórias do que pra mim, é o melhor clube de todos os tempos.
Obs: não consegui descer para ver Conti & Mandi e a estreia de Kevin Di Serna no Garden. Porém os comentários foram de excelentes apresentações.
It’s all about groove