O reconhecimento da música eletrônica como patrimônio cultural imaterial em São Paulo — o que realmente muda?

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Por em 22 de maio, 2025 - 22/05/2025

por Sofia Moretti

A música eletrônica acaba de ser oficialmente reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de São Paulo, após aprovação na Assembleia Legislativa. O projeto, de autoria do deputado estadual Caio França, representa mais do que uma simples formalidade legislativa: é uma declaração pública de que essa expressão artística, que há décadas movimenta clubes, festivais, economia criativa e identidade cultural urbana, é parte fundamental da história contemporânea do estado.

Mas, afinal, o que realmente muda a partir desse reconhecimento? Antes de tudo, é preciso compreender que quando um bem cultural — material ou imaterial — recebe esse título, ele passa a integrar a lista de expressões culturais que devem ser protegidas, valorizadas e fomentadas pelo poder público. No plano prático, abre-se um caminho para que políticas públicas sejam desenvolvidas, financiamentos específicos sejam pleiteados e projetos de preservação da memória, formação cultural e incentivo econômico possam ser implementados. Não se trata de um selo decorativo. É, tecnicamente, uma chancela que legitima a importância do movimento dentro da política cultural do estado.

Esse tipo de reconhecimento é relativamente recente quando aplicado a expressões culturais urbanas e contemporâneas. Em 2024, o hip-hop também foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de São Paulo, abrindo um precedente importante. E, na prática, esse movimento amplia a discussão sobre o que a sociedade entende como cultura merecedora de preservação: não apenas aquilo que carrega séculos de tradição, mas também movimentos que surgiram nas últimas décadas, que moldaram comportamentos, estéticas, relações econômicas e, sobretudo, formas de existência coletiva nas cidades.

A oficialização da música eletrônica como patrimônio cultural imaterial não significa “institucionalizar” o movimento ou transformá-lo em algo engessado. Pelo contrário. Significa reconhecer sua importância como fenômeno social e cultural, algo que, durante muito tempo, foi invisibilizado, marginalizado e muitas vezes criminalizado por conta da sua relação direta com a vida noturna, com os corpos livres, com as subjetividades dissidentes e com uma lógica de coletividade que muitas vezes escapa dos modelos tradicionais de consumo e cultura.

No contexto global, há exemplos que ajudam a dimensionar o impacto desse tipo de reconhecimento. Em Berlim, desde 2021, a cultura dos clubes e do techno é reconhecida como atividade cultural equiparada às artes, o que garantiu proteção jurídica aos clubs — que passaram a ter o mesmo status de teatros e salas de concerto — e acesso facilitado a linhas de financiamento cultural. Na França, movimentos como o hip-hop também atravessaram esse processo, com investimentos públicos em centros culturais, oficinas e programações que garantem a perenidade de um movimento que antes era visto como periférico. E, em uma escala ainda mais ampla, o choro foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo IPHAN, o que permitiu não só a preservação do estilo, mas também sua difusão nacional e internacional.

Quando pensamos na cena de música eletrônica de São Paulo, estamos falando de algo que vai muito além das pistas. Estamos falando de uma rede complexa que envolve clubs, festas independentes, coletivos, gravadoras, técnicos de som, iluminadores, profissionais de vídeo, performers, estilistas, designers, arquitetos de som e, claro, milhares de pessoas que, noite após noite, constroem experiências estéticas, políticas e emocionais nas pistas. Estamos falando também de impacto econômico, de geração de empregos, de turismo cultural, de transformação urbana.

Por isso, mais do que uma conquista simbólica, o reconhecimento da música eletrônica como patrimônio cultural do estado precisa ser entendido como uma oportunidade histórica. Uma oportunidade de consolidar políticas que garantam a sobrevivência dos espaços, que protejam as culturas noturnas das ameaças constantes de gentrificação e especulação imobiliária. Uma chance de reconhecer que aquilo que pulsa nas pistas é tão relevante quanto qualquer outro bem cultural.

O desafio, daqui em diante, será transformar esse reconhecimento jurídico em práticas reais. Em editais, em linhas de financiamento, em políticas de preservação da memória da cena, em apoio aos clubes e às festas que estão na linha de frente dessa construção cultural. A música eletrônica, que já sobreviveu à marginalização, à perseguição policial, às pandemias, às pressões econômicas e às transformações tecnológicas, agora carrega também o peso — e a responsabilidade — de ser reconhecida como cultura oficial. Que esse seja, de fato, um ponto de partida e não de chegada.

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