Quem me segue nas redes sociais sabe o quanto eu admiro e sou fã de John Digweed. Não só por sua história como um dos pais do progressive house, como também por sua qualidade distinta enquanto DJ, sendo dotado de uma técnica impressionante e de um estilo singular de propor música.
Eu tive a oportunidade de vê-lo aqui no Brasil (Warung) algumas vezes e também com Sasha em festivais, porém, vê-lo se apresentando em seu país favorito era um sonho que eu alimentava a alguns anos. Soma-se a isso o fato de ele não tocar no Brasil desde 2018 (WDF) então, se a montanha não vem até nós, vamos até ela.
Quando seu nome foi anunciado em Córdoba, uma cidade que eu ainda não conhecia e que possui fama global por ter um dos públicos mais intensos e educados da cena underground, não hesitei, finalmente havia chegado o momento de conhecê-la e de quebra, rever um dos meus DJs favoritos jogando no famoso galpão industrial intitulado FORJA.
John tem um público gigantesco na Argentina, onde seu som elaborado se funde com uma cena que respira música eletrônica. Nem mesmo na Inglaterra, seu país, ele vende tantos ingressos. Córdoba não decepcionou, pois na semana do evento os ingressos se esgotaram. As festas na Argentina costumam ter públicos que muitos festivais no Brasil sonham em ter, ou só alcançam com nomes super comerciais, lá, 1 artista (que para mim vale por dezenas), é capaz de colocar 10 mil pessoas em uma gélida noite de inverno.
Sábado, 24 de agosto, meu voo pousa em Córdoba advindo de Buenos Aires. Observo a cidade tentando associá-la a alguma outra do Brasil, lembro-me de alguma no interior do RS ou do PR, tudo plano, um certo grau de infraestrutura e muitas paredes com grafite. Um rio todo canalizado corta a cidade onde as pessoas fazem picnic ou caminham nas bordas de grama. A vegetação de árvores secas e um tom meio cinza me transmitia um clima perfeito para a noite. Mais de 400 anos de história, prédios baixos e quase nenhum sinal de modernidade, parece que a cidade está parada nos anos 80. Um dos destaques é sua Universidade referência e a mais antiga das Américas, datada de 1613, ou seja, existe muita história por perto. Ser uma cidade que recebe estudantes de todo país ajuda a explicar sua cena tão forte.
Logo fui conhecer um pouco da área central com a melhor companhia AR que poderia ter, alguns prédios históricos me remeteram ao centrinho de Floripa, voltamos a casa alugada com amigos argentinos para um legítimo assado na Parrilla e um bom Fernet com coca, drink clássico local. Às 23h fomos para o centro pegar nossa condução até o bairro de Talleres, descemos às 3 quadras do evento e fomos andando com centenas de pessoas fazendo o mesmo. Estava menos de 10 graus quando chegamos na zona industrial para acessar FORJA, uma fila de uns 300 metros assustou, porém nessa hora ter o ingresso VIP fez diferença. Na entrada, a revista era rigorosa especialmente nas garotas. Adentramos a escuridão do espaço, com seu teto metálico alto e bares pelas laterais.
00h30, Sir John Digweed já estava tocando seu tradicional deep tech com pitadas progressivas, o sound system estava mais baixo, convidando todos a se acomodarem para a master class que viria na sequência.
Depois de circular um pouco, fomos para linha de frente, a vontade de ver ele de perto era maior do que o esforço para atravessar pelo mar de pessoas até chegar a poucos metros do lendário DJ inglês.
01h, o som vai ao seu melhor volume, e que volume! Som alto e limpo é fundamental para um evento eletrônico e principalmente para um estilo tão complexo. ‘Diggers’ jogava faixas com groove e baixos dançantes, é seu costume, antes de subir o ritmo ele te ‘’pone a bailar’’. Alguns vocais lindos e destaque para a faixa ‘’Magic House’’ de Dino Lenny e Jarvis Cocker, elevando o nível de interação com público.
Suas mãos manejando o mixer como uma pinça ganhavam movimentos cada vez mais rápidos conforme a intensidade do set aumentava. John não te ganha pelo carisma ou interação, mas sim por sua classe, sua maestria sutil, sua imponência discreta.
É sua música que está em cima do palco e ele se transforma em um operário do mais alto calibre na arte da discotecagem, criando encaixes musicais que nos levavam pouco a pouco para estados de delírio coletivo. Outro destaque vai para a faixa ‘’IZ’’ Josh Wink, dando um clima espacial lindo.
A melhor faixa da noite surge às 02h20 da manhã, com todos rendidos à consistência sonora se misturando às luzes vermelhas que tomavam conta do ambiente.
Um sinth obscuro de poucas notas tem sua presença estarrecedora e o balanço dos hermanos vai ao seu ápice. Que faixa, que vibe. O vídeo abaixo fala por si só.
”Tehilim” de Jepe & Onur Ozman é outra música que você fica se perguntando de onde saíram elementos tão distintos e interessantes. Com certeza é esse tipo de faixa que mantém caras como ele interessados em sempre colocar músicas novas, empurrando ‘’la música del maldito futuro’’. (comentário de um argentino nas redes sociais)
MOSHIC na faixa ‘’I met you on the heel’’ é um daqueles momentos de quebra profunda, um tanto reflexiva, no meio do set. 03h30, ele coloca essa música para despertar sentidos arrepiantes em todos. Desta vez, eram as luzes azuis que davam o tom.
Eu adoro aquela velha sensação de ver a festa ganhando corpo, da energia se transformando e de um mestre ganhando o coração de todos na pista com sua construção de energia ascendente. Era isso que pensava em meio aquilo tudo. Rheinzand com a faixa ‘’Kills & Kisses’’ (Red Axes Remix) também é outra que merece mencionar.
Às 04h35 vai se encaminhando o set para o final, tão rápido quanto imersivo, mais um daqueles vocais matadores aparece na faixa ‘’Rivals’’ de GusGus (DJ HELL mix). Que obra prima, que batida, que mantra, aquele tipo de música que parece ser feita para John tocar.
Próximo do final, um último gás surge com uma faixa que não descobri o nome, mas que diz tudo através do vídeo abaixo. Que momento, mãos para cima, techno progressivo, bass pesado. Por momentos assim que eu viajei de tão longe!
05h, infelizmente o horário lá é limitado, mas eu estava feliz, já estava satisfeito. John saca simplesmente um remix de ‘’Heaven Scent’’. Não pude acreditar. Como? Depois de tantos anos sem vê-lo, depois de tanta espera, justamente na noite em que escolho para ir a Argentina, ele finaliza com seu maior clássico. Lançada em 1996, HS fez parte da trilha sonora do filme Groove e se tornou um dos maiores hinos do progressive house. O público aplaudia sem parar e aquela sensação de ‘’não quero ir embora’’ tomou conta da escuridão de FORJA.
Digwed deve tocar umas 4 ou 5 vezes por ano na Argentina e, obviamente, não toca seu maior clássico sempre, aliás, não há outros registros dele tocando-a nos últimos 10 anos.
Digamos que tirei a sorte grande; o evento deu sold out, ele estava muito inspirado, o público criou uma vibe incrível e como presente, John solta algo que os fãs mais hardcore iriam gravar e recordar por muito tempo. O que é para ser, será, saí do evento de alma lavada e já pensando no próximo encontro. Vale muito a pena ler os comentários dos argentinos no post da produtora BNP.
@florencia.s.paz – ‘’Después de escuchar lo que hizo el sábado, todo lo demás me parece tan basico. Que calidad !’’
@elianguzman – ‘’ No fue una fiesta, fue una experiencia.’’
@tomivaras – ‘’El mejor digweed es el que está por venir, nunca falla.’’
‘’El colorado’’ como lhe chamam os argentinos, devido seu cabelo ruivo, é nada mais do que uma verdadeira entidade da música eletrônica conceitual. Sua carreira e seus sets nos mostram porque é visto como um dos maiores DJs de todos os tempos, conseguindo se manter relevante por mais de 30 anos! Para mim, é simplesmente um prazer ouvir o cara que está em constante busca pela ‘’música do futuro’’.
Obs: a expressão utilizada por mim em relação a ‘’música do futuro’’, foi retirada da última compilação lançada por John em 2023, com este título e uma tentativa de determinar o estilo de som que irá predominar nos próximos anos.
It’s all about groove