A figura do DJ como ente máximo em um evento musical passou a ganhar relevância entre o final dos anos 80 e o início dos 90, através de uma explosão na cena clubber da Inglaterra se espalhando em seguida por toda Europa e o resto do mundo. Do dia para noite, residentes de clubes se tornaram ‘’super stars’’ em seus países, passando a viajar para outros levando as novidades dos estilos musicais em uma espécie de ‘’colonização sonora’’ em países como Argentina, Austrália e Japão. Lojas de discos de música eletrônica jogaram para o subsolo as lojas de rock em diversas cidades como Londres, Manchester e Liverpool.
O rápido acesso a milhares de novos discos fez alguns DJs se tornarem experts em determinadas linhas sonoras, mesmo que isso custasse tudo que tivessem ganho na noite anterior. Para eles, não importava quem produziu, mas sim a música em si e a capacidade de conectá-la dentro de um mix de novidades que surgiam a todo momento. Assim, variações de house e techno ganharam relevância, a exemplo do Acid House, Progressive House, Tech House, Deep House, etc. Esse processo de DJs locais se transformando em artistas globais, em constante tour, levando seus estilos próprios e passando a tocar até em estádios de futebol se retroalimenta por mais de 20 anos. O ápice desse processo ocorreu quando esses nomes, para além de um spot para lançar próprias músicas, passaram a criar ambientes exclusivos para seus produtores preferidos, assim surgiu os ‘’headlabels’’ globais.
Garantir uma certa exclusividade ainda maior na eterna corrida por apresentar ‘’o novo dentro do estilo próprio’’ era essencial. Ficou óbvio também que essas gravadoras poderiam se tornar label parties com residências importantes nos clubes de Ibiza em um primeiro momento, rodando depois também em clubes pelo mundo e levando seus ‘’pupilos’’ para novos públicos. Com isso, produtores também passaram a ter uma face, sendo conhecidos de perto. Soma-se a democratização da internet em todo mundo, onde ‘’encontrar as tracks que o DJ tocou’’ virou uma febre entre os clubbers mais aficionados. Com isso, uma centena de milhares de produtores passaram a ganhar relevância, sendo associados a big DJs da cena.
Um ponto de inflexão importante ocorre por volta de 2010/11, quando ocorre o boom do Deep House pelo lado ‘’underground’’ e o boom da cena mainstream com o surgimento do EDM (entende-se como som comercial big stage). Novamente, do dia para noite, jovens passaram a ganhar fama global, mas desta vez não mais por suas habilidades técnicas e personalidade enquanto DJs, mas sim pelas músicas que faziam, trazendo novas variações capazes de ganhar multidões. A figura do DJ que ‘’apenas’’ toca e não tem suas próprias músicas aos poucos foi perdendo relevância, suas qualidades ficaram em segundo plano com a ascensão ao estrelato de produtores musicais sendo bookados para apresentar suas criações nas pistas. O novo público passou a comprar ingresso para ver em ação aqueles artistas que ouviam nos canais como youtube e spotify.
A cena vinha de pelo menos duas décadas onde mestres das pistas tinham os maiores cachês e, quando possível, faziam produções no estúdio ou colaborações com experts mais bem desenvolvidos. A verdade é que poucos DJs tiravam tempo para desenvolver seu lado produtor; outros também nunca se importaram muito, afinal, suas entregas enquanto DJs eram tão impactantes que passaram-se anos e seus públicos foram se renovando naturalmente.
Porém, isso mudou com a ascensão dos produtores com milhares de “views” em diferentes plataformas. Ou seja, as pessoas passaram a ser fãs dos produtores em grande escala, e não mais do DJ.
A consequência é que esses produtores chegam nos clubes já com a “pista ganha”, pela empatia criada através de suas músicas. Essa mudança de perfil do público fez dezenas de ícones simplesmente perderem espaço, algo impensável anos antes. Mas, e a pista de dança? E a imersão sonora? Onde fica… É aí que o tempo é aliado dos verdadeiros DJs.
Não demorou muitos anos para essa nova geração de clubbers (2015/2024) começar a cansar de sets repetitivos e sem história desses grandes produtores. Não quero dizer que são ruins tecnicamente ou que tocam músicas ruins; não é o caso, mas sim da falta de amplitude dentro do espectro sonoro.
Após o hype do melodic house, uma geração inteira de clubbers (agora já com alguns anos de pista) passou a se perguntar: “E aí? É só isso?! Queremos mais profundidade”. E como eles sabem que é possível ir muito além de sets quadrados e de músicas sempre na mesma intensidade? Vez ou outra, esse público também assiste a DJs da velha guarda.
O boom que nomes como Carl Cox, Sven Väth, Hernan Cattaneo, Marco Carola e outros receberam nos últimos três anos comprova toda essa explanação.
A reviravolta, ou ‘’Plot Twist’’ ocorre no pós pandemia, quando todos voltam a sair, ávidos por imersões sonoras e o que encontram? Aqueles mesmos tipos de set de antes. O que parecia incrível, agora já não é suficiente. Quando se exige um nível maior de entrega, não recebem por parte de grandes produtores que já estão na estrada a anos tocando! O que explica isso?
Em minha opinião, essa é uma questão de conceito, afinal esses produtores nunca foram ‘’clubbers’’, não entendem o que é uma imersão de 8 horas dentro de um set. Simplesmente sair do estúdio e tocar não garante que ao longo do tempo você se tornará um grande DJ, pelo menos não no nível dos pioneiros dos anos 90, que cresceram na cena clubber, foram residentes de clubes por anos, detendo muita capacidade de leitura de pista.
Esses caras ainda estão na ativa, e quando aparecem, nadam de braçada em relação a entrega, elaboração, técnica e tudo mais. Claro que a cena ainda está mais pendula para o lado dos big produtores com faixas no top 1 e músicas inesquecíveis, porém, há um evidente esgotamento dos sets de 3 horas quadrados e de intensidade única. Pior, quando tocam por mais tempo, aí mesmo que se escancara a falta de criatividade, imaginação, leitura e entendimento de como construir um set. Porque? Pela limitação que o estilo musical do estúdio impõe, falta repertório, falta profundidade e pesquisa dentro de um espectro maior. Não estou defendendo o ‘’DJ que faz salada de fruta’’ e atira para todo lado, longe disso, mas sim da capacidade de variar e construir dentro do próprio estilo.
Ademais, o que mais temos visto são eventos com diversos DJs do mesmo estilo tocando em seguida exatamente a mesma fórmula sonora e até as mesmas faixas às vezes!!
Em resumo, a cena parece que novamente está se voltando aos artistas com viés de grandes DJs. Nesse momento, me parece surgir 2 problemas: os caras dos anos 90 já estão jogando a prorrogação, batendo na casa dos 60 anos! Existe uma segunda geração também excelente que está ali nos 40 aos 50 anos, caras que apareceram após 2000, que irão automaticamente serem os novos mestres e dominar a cena clubber nos próximos 10 anos. Porém, daí para baixo, fica realmente difícil encontrar grandes DJs, pelo menos não com potencial de arrastar multidões e ter bases de fãs prolongadas. A pergunta que fica é: como surgirão grandes DJs se a própria cena clubber diminuiu? Os clubes remanescentes quase não possuem mais a figura do residente, tão importante na formação de um futuro grande DJ.
O fato é que poderemos ver um grande declínio do nível de imersão do público nos próximos anos, com a aposentadoria da primeira geração dos ‘’super stars’’. Meu recado é: aproveitem enquanto há tempo.
É claro que a cena sempre se renova e as coisas mudam, então, se existe uma dica valiosa para quem está começando agora como artista é ‘’se você dedica 20 horas por semana na produção musical, dedique também horas aprimorando sua capacidade de discotecagem. Não só técnica, mas também de imaginação sonora’’.
Ouvir muitos sets de DJs antigos é algo que pode ajudar muito. Brincar de tocar várias horas pode ser muito importante, planejando as fases do set para manter o público sempre interessado e descobrindo coisas novas. Fazer a própria música está se tornando mais uma commodity, um cartão de entrada na sala dos games, um aval de qualidade e muitas portas abertas nos primeiros anos, mas, o que vai manter um artista ao longo do tempo é sua capacidade de criar momentos épicos enquanto se apresenta, saindo do óbvio e deixando marcas verdadeiras em quem assiste. Não acho que a cena vai retroagir e aceitar quem não produz sua própria música, mas, ainda mais desafiador será ser nota 10 tanto no estúdio quanto comandando uma pista de dança.
It’s all about groove